TRT 30 ANOS - Trabalho Escravo na zona urbana é a decisão histórica deste mês
Na estreia da série Decisões Históricas, que comemora os 30 anos do TRT-23, conheça o caso de trabalho análogo ao escravo de vendedores ambulantes. A publicação marca ainda o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo, celebrado em 28 de janeiro
Durante as três décadas de existência, o Tribunal Regional do Trabalho instalado no estado que está sempre nas primeiras posições do ranking de registros de trabalhadores resgatados de condições análogas às de escravo julgou dezenas de casos com essas características. Um processo, no entanto, chamou a atenção por ter ocorrido não em longínquas fazendas, mas nas vias movimentadas de cidades mato-grossenses e à vista de todos: na venda de panelas por trabalhadores ambulantes.
Quem via os vendedores com os jogos de panelas nas mãos, oferecendo o produto pelas ruas e praças, não fazia ideia de que estava diante de trabalhadores submetidos ao trabalho escravo contemporâneo: recrutados em pequenas cidades dos estados da Paraíba e do Ceará, com promessa de emprego e bons salários, eles passaram a viver uma realidade degradante de falta de condições básicas de higiene e pouca alimentação. Outro elemento típico do trabalho escravo também estava presente: os aliciados sofriam a servidão por dívida, pois o que era oferecido ficava anotado para ser descontado do pagamento, inferior ao salário mínimo.
Transportados por mais de 3 mil quilômetros na carroceria de um caminhão-baú até o município de Sinop (500km ao norte de Cuiabá), o grupo de cinco pessoas, incluindo dois menores de idade, foi cooptado por três intermediários para a revenda das panelas fornecidas por uma indústria de alumínio do interior paulista. O percurso, no qual os trabalhadores dividiam o espaço da carroceria com as mercadorias, era feito somente à noite para fugir da fiscalização da Polícia Rodoviária.
O caso, julgado no TRT mato-grossense em 2020, chegou à Justiça do Trabalho por meio de uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) com base em investigação da Polícia Federal. Os agentes encontraram o grupo dormindo em redes armadas em árvores ao relento, nas proximidades de um posto de combustível, às margens da BR 163, sem local para higiene pessoal nem alimentação. O grupo já estava na estrada há 30 dias, com previsão de se estender por mais cinco meses.
Iniciado na 1ª Vara do Trabalho de Sinop, o processo foi remetido para a capital e julgado na 9ª Vara do Trabalho de Cuiabá. A mudança ocorreu em razão de denúncias semelhantes contra a empresa fabricante de panelas em outras localidades, como em Santa Catarina. Assim, por envolver mais de um estado, a competência passou a ser de varas localizadas nos municípios-sede dos tribunais regionais do trabalho.
Servidão por dívida
Os policiais federais encontraram, com um dos responsáveis por recrutar o grupo, diversos cadernos com o controle dos débitos, iniciados antes mesmo de os trabalhadores saírem de suas cidades no Nordeste, com anotações dos custos das viagens, alimentação e até quanto cada trabalhador teria de pagar pelos banhos.
Os débitos deveriam ser pagos com trabalho, revelaram as anotações. Mas não importava o tanto que trabalhassem, as dívidas só aumentavam, já que o lucro de 5 reais obtido pela venda de cada jogo de panela era irrisório. Foi o caso de um dos vendedores que deixou sua cidade devendo 600 reais e, ao chegar em Mato Grosso, já devia 1,4 mil. Outro devia inicialmente 5 mil reais e, no momento da operação policial, o débito já era de 6 mil.
As investigações revelaram ainda que os trabalhadores só poderiam deixar a prestação do serviço quando conseguissem pagar a dívida ou quando um terceiro as quitasse por eles. Assim, caso quisessem trabalhar para outro dono de caminhão, esse teria de comprar a dívida e os trabalhadores ficavam sujeitos a todas as ordens dele.
Trabalho Escravo
A sentença concluiu que o grupo foi submetido a condições de trabalho escravo contemporâneo e condenou os responsáveis pela contratação, no caso os donos dos caminhões, e também a fábrica de panelas a arcarem com indenização por danos morais no valor de 10 mil reais a cada trabalhador. Além disso, determinou o pagamento por dano moral coletivo em 100 mil reais. Reconheceu o vínculo de emprego e determinou o pagamento de todas as verbas trabalhistas.
Todas as condenações foram mantidas no Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (MT). Por unanimidade, a 1ª Turma acompanhou o relator do recurso, desembargador Bruno Weiler. Os julgadores refutaram o argumento de que os trabalhadores não foram coagidos fisicamente a entrarem no caminhão-baú, mas agiram de espontânea vontade.
O relator avaliou que isso não mudava a questão, já que eles foram “ludibriados pelos réus com a falsa promessa de emprego e boa condição econômica, mas se viram, posteriormente, presos a um sistema de dívidas que, a todas as luzes, jamais seriam quitadas, gerando um ciclo de empréstimos e trabalhos com a falsa ilusão de quitação.”
Cegueira deliberada
Ao recorrer ao Tribunal, a fabricante das panelas alegou que ela se limitava a vender seus produtos aos proprietários dos caminhões e, por isso, não poderia ser responsabilizada pelo modo como esses geriam seus empregados.
Mas o argumento não convenceu os magistrados. Da mesma forma que salientou a juíza Eliane Xavier na sentença, os desembargadores concordaram que se aplica ao caso a teoria da cegueira deliberada, quando a empresa que se beneficia diretamente da força de trabalho de toda a cadeia produtiva coloca-se conscientemente em situação de ignorância, sem se preocupar em saber por que meios seus produtos são revendidos e sem realizar visitas aos fornecedores. “Não é razoável acreditar que a empresa não soubesse como se dava a venda dos produtos”, ressaltou o relator, concluindo ter ficado evidente que ela “simulava não saber da explícita ‘existência de grave violação a direitos humanos na base da teia produtiva’ para obter maior lucro em sua atividade econômica”.
A indústria fornecia as panelas aos três réus sem que esses fizessem qualquer pagamento imediato, de modo a viabilizar o escoamento de sua produção. Depoimentos e notas fiscais comprovaram também que a fabricante foi a real beneficiária da cadeia produtiva e, por consequência, da exploração dos trabalhadores.
Um dos réus que recrutava os vendedores afirmou que o dinheiro que recebiam era repassado para a fábrica das panelas, “que trabalha nesse sistema de adiantar valores” e depois tem que pagar de volta.
Os desembargadores também confirmaram a responsabilidade dos agenciadores e dos donos da indústria de panelas responderem de forma solidária pelas indenizações e obrigações.
Por fim, a decisão do TRT confirmou a obrigação de todos os réus cumprirem uma série de determinações, entre elas, não contratar pessoas abaixo dos 18 anos para trabalhar no comércio ambulante, não recrutar trabalhadores de uma localidade para outra sem comunicar as superintendências regionais do trabalho e emprego (SRTEs) e não transportar empregados em veículos de carga ou outro que não atenda às normas.
Também foram obrigados a assegurar condições do retorno ao local de origem para o trabalhador que for recrutado fora da localidade, custeando as despesas de alimentação e hospedagem durante todo o deslocamento e, durante o serviço, garantir alojamento e banheiros.
A decisão proibiu, ainda, que os réus fizessem a compensação salarial de eventuais dívidas contraídas pelos trabalhadores, em especial daquelas para pagamento de itens que devem ser fornecidos de forma gratuita pelo empregador, como transporte, alimentação e alojamento.
A fabricante de panelas também se viu proibida de fornecer mercadoria para quem for flagrado pelo MPT, PF ou Justiça Federal, submetendo pessoas a trabalho degradante ou análogo ao de escravo.
Pandemia e pobreza
No ano em que esse processo foi iniciado, em 2018, o Brasil registrou 1.723 trabalhadores resgatados de condições análogas às de escravo. Conforme dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Governo Federal, foram 1.200 casos no meio rural e 523 trabalhadores na área urbana. Dentre eles, constavam os vendedores de panelas flagrados em Sinop que culminou na condenação imposta pelo TRT mato-grossense.
A situação piorou nos anos mais recentes, com crises econômicas e sanitárias que alimentam a pobreza. A pandemia e o aumento da situação de vulnerabilidade social fizeram o número de trabalhadores em condições análogas às de escravo saltarem nos últimos dois anos. Só em 2022, 2.575 brasileiros foram encontrados nessa situação. O número é um terço maior que em 2021, conforme levantamento da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego.
Ao todo, foram resgatados no país 60.251 trabalhadores desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, em maio de 1995.
Características
O trabalho escravo contemporâneo se caracteriza por trabalho degradante, jornada exaustiva e trabalho forçado. Aliado a isso, a retenção de documentos, de objetos pessoais, também a exigência do empregador de que os seus trabalhadores adquiram produtos dentro de um determinado comércio, normalmente mantido pelo próprio empregador e com preços acima do mercado.
Atualmente têm aumentado os casos de trabalho escravo na zona urbana, como dos vendedores de panelas julgado pelo TRT mato-grossense. Também são cada vez mais comuns episódios na indústria têxtil e no trabalho doméstico.
Data nacional
28 de janeiro é o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo, celebrado anualmente em lembrança a quatro servidores do Ministério do Trabalho mortos em 2004, no episódio que ficou conhecido como a chacina de Unaí. Os auditores fiscais Nélson José da Silva, João Batista Soares Lage e Eratóstenes de Almeida Gonçalves, e motorista Aílton Pereira de Oliveira, foram mortos nessa data, durante fiscalização para apurar denúncia na região de Unaí, em Minas Gerais.
PJe 0000874-80.2018.5.23.0036
(Aline Cubas)
(Aline Cubas)